Rita era uma mulher bonita e elegante, tinha conhecido Pedro na faculdade mal acabaram de se formar tinham casado, viviam felizes e apesar de Pedro passar a vida a falar em filhos, Rita nunca os quisera, mas para fazer a vontade de Pedro tinha engravidado, na esperança que nascesse um rapaz, mas tinha nascido uma menina, uma linda menina e desde que ela nascera que Pedro a via como a menina dos olhos dele, ele mimava-a muito, aos poucos Rita foi ficando com ciúmes da maneira como Pedro tratava a filha, sempre com um mimo, sempre com presentes para a pequena e esquecendo-se dela.
O casamento começava a detiorar-se e Rita culpava a filha por isso, pois desde que ela nascera que Pedro trabalhava mais para fazer frente as despesas, e sempre que chegava tarde era ao quarto da filha que ele se dirigia primeiro, sempre com algo para tentar compensar a sua ausência durante o dia. Pedro chegava a casa demasiado cansado para dar atenção à esposa, ou aos pequenos pormenores que iam aparecendo, via as nódoas negras de Mariana e quando a questionava sobre o que tinha acontecido ela dizia sempre que tinha caído ou que se tinha magoado na escola, não queria contar ao pai que era uma menina má e que se tinha portado tão mal ao ponto de a mãe lhe bater para que ela não voltasse a fazer o mesmo. Pedro não achava muito normal Mariana andar sempre assim, mas como era uma criança e como as crianças nunca estavam quietas era bem possível que no meio das brincadeiras com as amigas ela se tivesse magoado.
Mariana tinha um ar tão frágil, um corpo tão magro e pequeno, uma pele branca como a neve e uns olhos tão azuis como o céu, mas rodeados por umas olheiras tão profundas. Profundas demais para uma menina de cinco anos e um rosto amargurado, como se já tivesse vivido vinte anos… raramente falava na presença de estranhos, e nunca se portava como uma criança normal para a sua idade, parecia uma adulta presa num corpo de criança.
Os poucos anos que tinha, levaram-na levado a crescer rapidamente, apesar de não entender o porquê, depressa aprendeu como agir para que nada corresse mal. Não queria ser uma má menina e nem queria voltar a aborrecer a mãe. Mas por mais que se esforçasse fazia sempre tudo ao contrário e pensava muitas vezes que ela era má, que fazia tudo mal, que fazia com que a mãe se chateasse e se zangasse tanto ao ponto de lhe bater da maneira que batia. Deitada ao fundo da sua cama, como que escondida, ela chorava sozinha, sozinha e em silêncio, não podia chorar alto, a mãe não a podia ouvir chorar, se não era pior, muito pior, e ela não queria zangar a mãe novamente…
Do seu estômago saiam estranhos ruídos de fome, mas hoje iria dormir novamente sem comer, estava de castigo e a maneira como a sua mãe a tinha de castigar depois de a espancar era deixá-la trancada no quarto sem comer. E hoje tinha sido um desses dias, estava quase na hora de jantar e Pedro ainda não tinha chegado para jantar, enquanto isso Mariana brincava no seu quarto sozinha com os legos, tinha espalhado o pequeno balde com as peças no seu quarto e aos poucos montava um castelo, quando Rita furiosa entrou no quarto.
-O que estás tu a fazer?
Mariana nem teve tempo de olhar para mãe pois sentiu logo um violento pontapé que elevou o seu frágil corpinho contra o armário do quarto.
- Estas a desarrumar o quarto, eu não te avisei que não queria nada desarrumado? Mas tu fazes de propósito só para eu me zangar contigo não é?
Mariana chorava sem saber o que dizer ou fazer, não compreendia porque a mãe estava assim, aos gritos.
- Não me respondes, és surda é?
Quando tentou abrir a boca para dizer que estava só a brincar e que depois arrumava tudo no seu devido lugar, só conseguiu soltar um grito abafado, pois Rita agarrou-a pelos cabelos e atirou-a para cima da cama, a força que usou foi tanta que Mariana rebolou por cima da cama indo cair chão do outro lado da cama, sentiu o sabor do sangue na sua boca e deixou-se ficar assim, talvez a mãe não lhe fosse bater mais se ela ficasse quieta, e doía-lhe tanto as costelas que mal se conseguia virar.
- Quero isto tudo arrumado e quero-te na cama já, eu já volto para ver se está tudo no seu devido lugar.
Ouviu os passos da mãe a afastarem-se e o som da porta a fechar. Ficou paralisada por uns tempos, até que ganhou forças e se levantou, arrumou os legos, vestiu o pijama e deitou-se como lhe tinham ordenado. Iria ficar à espera que a mãe a chamasse para jantar, mas as horas foram passando e ninguém a tinha chamado nem a mãe e muito menos o pai, mas também não sabia se o pai já tinha chegado a casa.
Pedro chegou já passavam das onze da noite, tinha tido mais trabalho e tinha ficado no escritório até mais tarde, quando chegou a casa pousou a pasta e começou a subir as escadas para ir ao quarto de Mariana como era hábito quando ouviu a voz de Rita.
- Boa noite, isto é que são horas? Sabes a quanto tempo estou à tua espera para jantar?
- Desculpa, tive muito trabalho e nem dei pelas horas passarem.
- Podias ter avisado, não era?
- Já te disse que não dei pelas horas, desculpa. Mas podias ter comido sem mim.
- Sim e eu ia mesmo sentar-me à mesa sozinha.
- Sozinha não, com a Mariana.
- É a mesma coisa.
Pedro não gostava da maneira fria e desinteressada que Rita utilizava para falar da sua filha, mas compreendia a mulher arranjando para ele mesmo a desculpa de que era Rita quem cuidava de Mariana, e sendo Mariana uma criança, compreendia que ela quisesse a companhia de um adulto para conversar ao jantar.
- Bem vou só lá a cima dar um beijinho à Mariana e volto já para baixo.
-Não acredito, chegas a estas horas e ainda me vais fazer esperar mais tempo pelo jantar.
Pedro estava exausto e não queria discutir aquela hora.
- Pronto vamos lá jantar. Depois vou lá acima. Apesar de já não ter fome Pedro esforçou-se e acabou por fazer companhia à mulher e jantou, tomou banho e deitou-se.
Sentia-se demasiado cansado com o trabalho e com as constantes cobranças de horários de Rita, hoje não iria dar um beijinho à filha, para além do mais já era muito tarde e Mariana já estava a dormir, não a iria acordar.
Eram nove horas e Mariana estava a dormir descansada quando de repente sentiu os lençóis a serem bruscamente levantados para trás e ouviu a voz da sua mãe.
- Ainda estas a dormir sua preguiçosa, não sabes que tens escola, és sempre a mesma coisa.
- Desculpa, mãe.
- Desculpa… desculpa…é só isso que sabes dizer.
- Já viste como tens esse lábio? Mariana limitou-se a encolher os ombros.
- Agora vão dizer que eu sou uma má mãe porque tu caíste da cama abaixo e eu não estava atenta. Estou farta que olhem para mim como uma má mãe, tu é que és uma má menina e não fazes o que eu te mando, se fizesses nada disto tinha acontecido.
Mariana estava cheia de dores, mas sabia que não se podia queixar, sentiu uma forte dor lombar quando a mãe lhe arrancou o pijama do corpo, e a dor piorou quando a mãe lhe começou a dar banho com agua fria, queria chorar queria dizer à mãe que ela a estava a magoar, mas sabia que se o fizesse iria ser pior, pois sabia que a mãe não gostava de meninas choronas. Suportou a dor do banho e a dor de ser vestida e penteada à pressa e sem o menor cuidado. Nem sabe como consegui sair do carro e chegar à sua sala de aula, não tinha forças, tinha fome, e doíam-lhe tanto as costas que mal conseguia respirar quanto mais andar.
Sara, a sua professora mal a viu chegar, viu que algo não estava bem com a menina. Mariana estava pálida, encolhida sobre o seu lado direito. Algo tinha acontecido com ela.
- Estás bem Mariana?
- Estou sim senhora professora.
- Porque estás encolhida dessa maneira, tu não estás nada bem, olha-me esse lábio
- É que eu ontem cai das escadas abaixo e magoei-me nas costas e no lábio.
- Deixa-me ver as tuas costas.
O pânico apoderou-se do rosto de Mariana, ela não queria que a professora visse as suas costas, nem o seu corpo, porque iria certamente ver as outras marcas e não iria acreditar que ela tinha caído das escadas.
- Não é preciso eu estou bem, foi só uma coisa pequena.
-Eu insisto Mariana, deixa-me ver.
Começou a levantar a camisola a Mariana, e mal o fez, sentiu um arrepio pelas costas acima, não era possível, não queria acreditar nos que estava a ver, pegou na Mariana ao colo e foi com ela para outra sala, não queria que os restantes alunos vissem o que ela estava a ver.
Fechou a porta sentou a pequena no seu colo e despiu-lhe a camisola por completo, soltou uma lágrima sem querer, era mais forte do que ela, nem queria acreditar no que os seus olhos estavam a ver, era verdade que Mariana faltava muitas vezes à escola e que dizia que estava doente… agora tudo fazia sentido. Aquela menina não tinha caído das escadas, o corpo dela estava coberto de hematomas uns mais antigos e outros recentes. Aquela menina era vítima de maus tratos. Voltou a vesti-la e apertou-a nos seus braços com ternura, uma ternura que Mariana nunca tinha sentido antes.
- Quem te fez isto?
- Ninguém, fui eu que caí, eu sou uma desastrada e caí das escadas.
- Sabes que podes confiar em mim, eu só te quero ajudar.
- A tua mãe levou-te ao médico?
- Não, eu não preciso de ir ao médico, eu estou bem.
- Mariana eu tenho de chamar a tua mãe para ela te levar ao médico, pois eu acho que tu podes ter umas costelas partidas.
Mariana começou a chorar baixinho, A professora não podia fazer isso, não podia chamar a mãe, ela não a ia levar ao médico e ia-lhe bater mais, pois ela tinha sido má e tinha deixado a professora ver as nódoas negras e não tinha mentido bem o suficiente para ela acreditar que ela só tinha caído das escadas abaixo. O choro deixou de ser baixinho e passou a ser um choro descontrolado seguido por um,
- Por favor não.
-Pronto, pronto… Acalma-te, eu não chamo a tua mãe. Mas vou ter de te levar ao hospital, está bem?
- Sim está bem,mas promete que não lhe diz nada, por favor.
- Prometo. Espera aqui só um pouco que eu já venho, está bem? Mariana acenou com a cabeça. Sara foi falar com a Directora da escola, tinha de lhe contar o que tinha visto, não podia sair da escola com uma aluna sem dar uma justificação a alguém. Assim o fez depois de falar com a directora de pegar a sua mala e o contacto telefónico dos pais de Mariana, foi ter com ela e levou-a ao hospital.
As enfermeiras assim que a viram foram logo cuidar dela, deixando Sara sozinha na sala de espera.
Sara rodou para lá e para cá… para lá e para cá, sem saber o que fazer, que podia ela fazer por aquela pobre criança, se fosse pedir justificações aos pais corria o risco de que eles a transferissem para uma outra escola e continuariam com os maus tratos, mas também poderia ser outra pessoa a fazer-lhe aquilo e não os pais. Mas a reacção de Mariana quando ela lhe falou em chamar a mãe não tinha sido uma boa reacção. A enfermeira chamou-a e informou-a que Mariana tinha duas costelas partidas e um hematoma interno, que tinha de ficar internada pelo menos um dia para observações, que o melhor era chamar os pais dela.
Sara não sabia o que fazer… depois de algum tempo a pensar no que seria melhor e na reacção de Mariana ao facto de ela querer chamar a mãe… optou por ligar ao pai.
Pedro quando recebeu a chamada de Sara nem queria acreditar no que a professora lhe estava a contar. Chegou ao hospital e foi falar com a enfermeira, ele queria ver a sua filha, tinha de a ver, tinha de falar com ela, tinha de saber o que se tinha passado. Pois Rita não lhe tinha dito que ela tinha caídos das escadas, não lhe tinha dito nada e ele ontem não a tinha visto, sentia-se culpado por não ter ido ao quarto da filha na noite anterior, mas mesmo que fosse, não tinha visto nada, na maioria das vezes quando lá ia Mariana já estava a dormir. E não queria acreditar no que Sara lhe contara que vira no corpo da sua filha, não podia acreditar que ela estava a ser vitima de maus tratos, não queria acreditar que Rita poderia fazer mal à própria filha, sabia que ela não tinha muito jeito para ser mãe e que tratava a filha com alguma frieza, mas daí a bater-lhe…Não. Não podia ser.
A enfermeira informou Pedro do estado da filha e falou-lhe dos hematomas antigos que tinham encontrado por todo o seu corpo e autorizou que fosse ter com ela.
Pedro cabisbaixo entrou no quarto… Mariana assim que o viu sorriu, um sorriso triste e meigo.
-Desculpa pai.
-Desculpa o quê minha princesa?
- Desculpa por eu ser uma menina má e por te fazer triste.
- Mas tu não és uma menina má, és a melhor menina do mundo.
- Não sou não, a mãe diz que eu sou muito má, e que tu não gostas de mim, e que é por minha causa que nunca vens cedo para casa, para não me teres de ver.
Pedro ficou sem forças, nem queria acreditar no que estava a ouvir da boca daquela pequena e frágil criança. Ganhou coragem e perguntou-lhe.
- Mariana é a tua mãe que te bate, foi a tua mãe que te deixou desta maneira?
Mariana deixou uma lágrima rolar pela sua face…
Não foi preciso mais nada para que Pedro entendesse que sim, que a mulher que amava, que a mãe da sua filha era um monstro sem coração.